19/08/2007

Revista Marie Claire - Estranha Sedução


Ela invade nossas casas todos os dias, às 9 pontualmente, no papel das gêmeas de 'Paraíso Tropical'. Mas quem é Alessandra Negrini, afinal? Séria, profissional, casada há cinco anos, mãe de dois filhos, mas, acima de tudo, misteriosamente inviolável. Como conseguir sua senha? A entrevista abaixo dá a dica.
Alessandra Negrini é uma mulher difícil.Era isso o que ecoava ao meu redor, dito por amigos jornalistas que já haviam entrevistado a atriz: 'Ela não ri, não deixa você à vontade. Boa sorte'.Magnífico.A fim de me preparar para o que viria, passei no estúdio fotográfico onde estavam sendo realizadas as fotos desta capa, na zona sul paulistana. Antes do bate-papo, queria sacar a menina que entrou em nossas vidas em 1995, aos 25 anos, como protagonista da minissérie global 'Engraçadinha'.Ao chegar, vi a atriz, ainda mais bonita aos 36, retocando a própria maquiagem sob o testemunho de Wilson Eliodório, maquiador talentoso, que trabalha em muitas de nossas capas. 'Eu gosto assim', dizia ela, na frente do espelho, enquanto se embelezava.No estúdio, fotógrafo, assessor, figurinista, assistentes disso e daquilo e eu, semipetrificados, observávamos a forma bastante específica com que Alessandra conduzia tudo. Dançávamos numa linha muito fina, que separa uma certa zona de desconforto, ainda administrável, de outra, quase caótica, e bastante difícil de controlar. A qualquer momento, egos poderiam chicotear pelos ares. Prosseguíamos com cuidado.Enquanto Alessandra -que há cinco anos mora com o músico Otto, com quem tem uma filha de três anos- ziguezagueava pelo local, escolhendo da cor do batom ao figurino, trocávamos olhares curiosos, desses que levantam sobrancelhas, na esperança de que alguém, alguma hora, pudesse dizer alguma coisa que relaxasse nossa estrela.Finalmente, Wilson conseguiu furar o bloqueio e ter acesso ao rosto da moça.Ela relaxou ainda mais quando gostou do conceito da capa. Minutos depois, acabaria cedendo e iniciando um processo de colaboração com nossa equipe de figurinistas. Ainda assim, permanecia espiritualmente impenetrável. E eu, que só observava, pensava seriamente em tomar uma atitude minimamente sensata: correr dali e nunca mais voltar. Mas a conta do cartão de crédito falou mais alto e resisti.Saímos do estúdio, quase 10 da noite, para o descolado Emiliano, onde Alessandra e eu bateríamos um papo. Ela me convidou para que conversássemos em seu quarto, já que passaria a noite ali. Aceitei, ainda andando na ponta dos pés por aquela zona de desconforto.Subimos. Ela pediu uma taça de prosecco, sentou no sofá e sugeriu que começássemos: é objetiva.Uma hora e meia depois, eu estava dentro do elevador, a caminho de casa. Matutando sobre a entrevista que acabara de fazer, entendi que algumas pessoas são tão misteriosamente sedutoras que podem se deixar invadir sem necessariamente revelar suas senhas.
Alessandra é uma dessas mulheres: arrebatadora, direta, profissional, esperta, articulada, dura, séria, metódica. Tudo isso.
Mas simplesmente difícil não a traduz.
Marie Claire Você sempre foi bonita?
Alessandra Negrini Nunca me senti bonita. Sempre me senti estranha. No colegial, me sentia estranha a tudo e a todos. Tipo a excluída. O bom é que desenvolvi esse olhar estrangeiro, aprendi a estar em constante estado de observação. Isso é especialmente bom para a minha profissão.
MC Você é uma pessoa sexual?
AN Sempre gostei muito de namorar [ri, maliciosa]. Acho que a curiosidade é que move o ser humano. Sou curiosa, e o sexo passa por isso: pelo conhecimento do outro. Eu me encanto com o ser humano. Meu material emocional é o outro.
MC Mas isso é uma contradição, porque o ator é, por definição, narcisista.
AN Esse é o paradoxo. Você tem que se mostrar, mas não pode não olhar o outro. É complicado.
MC Quando sacou que atuar era a sua praia?
AN Lembro que era criança, em Santos, onde passei minha infância, e fazia pecinhas com as pessoas do prédio. Com 18 anos me matriculei no curso de teatro. Nessa época, fui chamada para fazer um teste na Globo. Como não estava nem aí para TV, fui fazer o teste nesse espírito, relaxada. Por isso, devo ter me saído bem. Aí fui parar na Globo e acabei me encantando com a TV. Porque é o único meio que alcança o Brasil inteiro, independentemente de classe social. O teatro é sensacional, talvez seja o grande prazer do ator, mas, para você fazer teatro, tem que fazer parte de um certo grupo, conhecer as pessoas influentes. A TV não é assim. A TV é mais democrática: você vence se o público gostar de você.
MC E o que incomoda em TV?
AN A exposição. Eu faço alguma coisa em TV e preciso ficar um tempo afastada. Estou há cinco anos sem fazer novela [a última foi 'Desejo de Mulher', em 2002. Depois disso, participou da minissérie 'JK', gravada em 2003, mas exibida no ano passado]. Era hora de voltar, mas preciso desse descanso logo depois. Não só pelo trabalho, que é excessivo, mas também por causa da exposição. O gasto de energia é enorme. Eu coloco na cabeça que os meses de novela são de doação. Vou me entregar, vou ficar exausta, mas depois preciso me recolher.
MC Nessa jornada dupla que você vive hoje, é mais interessante representar o papel da boa moça ou da moça má?
AN Personagem é como filho, não dá para ter preferência. A Paula me encanta pela capacidade de amar -e é sempre bom falar de amor porque me deixa mais sensível. A Taís é pura brincadeira: engraçada, malandra, mal-humorada, mas se machuca como todo mundo. É gostoso elaborar esse tempero da vilania com a fragilidade. O que me dá prazer é esse equilíbrio: o amor de uma, a malícia da outra.
MC O que cansa mais: público ou mídia?
AN Nunca me senti invadida pelo público. Mas essa coisa de paparazzi... Preferia que não houvesse isso de me flagrarem jantando num restaurante domingo à noite. Tem gente que sabe lidar com essa invasão, mas eu, definitivamente, não sei.
MC Isso tem a ver com seu lado introspectivo?
AN Muito. Gosto de ficar sozinha no meu canto, de ficar entre poucos e bons amigos e adooooro dançar, adoro festa. Mas festa de amigos, né? Não de uma marca disso ou daquilo. Em festa de amigo, você só me vê dançar. Acho que dançar é uma forma bacana de celebrar a vida.
MC Por falar em celebrar, a fase de descobertas foi em Santos?
AN Tudo: primeiro beijo, primeiro namorado, primeira paixão ... Santos me deu um tempero que, se fosse só paulista, não teria. Nasci em São Paulo, então tenho esse jeito paulista de ser, essa coisa meio cricri, sabe? Só falo isso porque amo essa cidade. Santos, pra onde minha família mudou quando eu era pequena, tirou esse aspecto unicamente cosmopolita de mim. Na adolescência, lembro de paquerar muito. Na praia, na rua, na escola, na missa...
MC Na missa?
AN Ué, por que não? Era missa dos jovens.
MC Educação católica, então?
AN Católica light, sabe como é? Classe média, normal. Minha mãe e meu pai fizeram USP, se conheceram lá. Ela, pedagoga. Ele, engenheiro. Isso em 65. Eles me incentivaram a estudar, a pensar na minha independência, a viajar. Não fui formada para ser dona de casa. Meu pai falava: 'Essa coisa de criar raízes é bobagem'. Acreditei piamente, e, por vários anos, fui meio nômade.
MC Isso não pira a cabeça da mulher moderna? Porque a gente quer ser livre, mas também quer encontrar um grande amor, ter filhos, uma família...
AN Tive que resolver isso, foi um grande duelo interno. Me assustei quando percebi que, uma hora, ia querer casar, ter filho, essas coisas. E havia essa dicotomia dentro de mim: eu queria muito ser uma mulher forte, independente, solta. Como conciliar? Mas a gente amadurece e se transforma.
MC Não basta ser mãe e esposa. É necessário ser linda, magra e bem-sucedida profissionalmente. Não é muita coisa?
AN Acho isso bom. Nossa geração está resgatando o amor. Porque antes era apenas essa coisa do trabalho, essa coisa bem anos 80, focada na grana. Antes disso, era a dona de casa tempo integral. Agora tem romance e realização profissional. O que pega é o compromisso com um certo padrão estético. Esse é o fardo.
MC Você sofre com esses padrões?
AN Sofro. Sofro, por exemplo, porque o meu nariz é grande, porque eu não tenho peito... Entro numas neuras: 'Será que eu deveria fazer uma plástica no nariz?'. Mas aí vem uma outra voz que diz: 'Porra, Alessandra, deixa de ser idiota, tá tudo bem'. Tem esse duelo dentro de mim. Tem horas que eu dou um basta e grito: 'Chega de neurose!' Eu quero apenas ser, não quero ter que me enquadrar. Mas isso dá um trabalho enorme.
MC Como extravasa?AN Faço psicanálise há dez anos, e leio demais. Leio em aeroporto, no táxi, no avião...
MC O que você lê?AN Faz um tempo que leio apenas três autores: Proust, Nietzsche e [Jorge Luis] Borges. Agora, estou lendo 'Em Busca do Tempo Perdido'. São sete volumes, tô no terceiro. Quando chegar aos 40, quero estar no último, que é 'O Tempo Redescoberto'.
MC Que culpas você foi obrigada a trabalhar na terapia?
AN Ah, a culpa de gostar de namorar, de ficar famosa, de ganhar dinheiro... a gente tem culpa de tudo. Filho então, bicho, isso é uma fábrica de culpa. Ter que trabalhar e deixar o filho em casa...
MC Mas a verdadeira culpa não é da religião, que nos impõe limites muito cedo?
AN Sem dúvida. É a moral religiosa. Mesmo sem a gente freqüentar igreja, sem estar fisicamente conectado ao ritual, esses valores estão grudados. É a coisa da moral judaico-cristã. Sabe isso de achar que estamos aqui para sofrer? É o que corrói e trava. Não é assim! Somos todos manifestações divinas, tá tudo certo, sabe? Tá tudo certo.
MC Você passa isso para seus filhos? [Ela tem dois filhos: Antonio, 10, de Murilo Benício, e Betina, 3, de Otto]
AN Mostro a beleza das coisas. Essa busca da verdadeira beleza, que é a do momento, a beleza do mar, a beleza do instante que você respira e se sente vivo. Deus está nessas manifestações. Temos que questionar a moral e a ética.
MC Você acha que esse tipo de formação pode facilitar o caminho para eles?
AN Meus filhos terão um caminho mais fácil do que o meu. Minha filha, como mulher, vai ser mais livre. Vai se cobrar menos, vai dançar com mais liberdade a música da vida. Fico feliz. Para tirar proveito dessa viagem, é preciso ser leve.
MC Como encaixou a maternidade na sua vida agitada?
AN Ter filho é parte da criação. Dá noção do limite, porque você é mãe, mas não é dona daquela pessoa. É bacana saber que aquela criatura tem a vida dela, que vai ser uma pessoa diferente de você, do que você pode ter sonhado ou idealizado. A maternidade dá força. Você se sente pisando no chão com propriedade: 'Eu sou mãe!' Fica menos carente, sabe? Porque tem aquela figurinha que te ama e ponto.
MC Ser mãe não é, também, dar uma pirada? você não é dona daquele outro ser humano, mas, ao mesmo tempo, ele parece ser tão seu...
AN Ah, pira. Você se cobra se deveria ser mais presente, não entende por que o filho não quer ficar com você o tempo todo. Tenho um filho de 10 anos que agora prefere ficar com os amigos no clube do que sair comigo para almoçar no domingo. Machuca, mas é preciso fazer disso uma relação sem cobranças excessivas. É uma aventura. Não me pouparia dela.
MC Quando o Antonio nasceu você tinha 26 anos e estava solteira. Sua vida continuou numa boa?
AN Não cheguei a morar com o pai do meu filho, e o Antonio nunca me impediu de nada. Acho que a melhor coisa para um filho é ver a mãe feliz, e não a mãe culpada, que deixou de fazer coisas para criar, para cuidar. Minha mãe parou de trabalhar, e eu não curtia. Não queria esse gosto ruim na vida do meu filho.
MC Mas a experiência com a Betina foi completamente diferente, não?
AN Sim, porque a Betina veio em circunstâncias completamente diferentes, ela foi planejada... A gente tinha acabado de transar, estava na cama, relaxados e apaixonados, e o Otto disse: 'Vamos ter um filho? Eu quero um filho, me dá um filho!' Foi muito bonito. Eu até estava a fim, mas esse pedido me tocou profundamente. Eu pensei: 'O amor que eu sinto por ele é tão grande que quero um filho dele, mesmo que a gente não vá durar para sempre'. Cheguei à conclusão que queria muito que um filho existisse desse amor. A Betina começou a ser concebida naquele momento.
MC Esse amor ainda é assim intenso depois de cinco anos?
AN O casamento é uma aventura. Você passa por fases, e o prazer está na superação de dificuldades. Acho que a transformação da mulher é mais clara. Então, eles precisam ter jogo de cintura para se adaptar. Mas o Otto é sensível, e acaba se moldando. Somos pessoas inquietas... não conseguiria estar com uma pessoa que não tivesse a inquietude dele.
MC A formação de vocês foi muito diferente: ele, em Pernambuco, mais solto. Você em Santos, mais convencional. Isso ajuda ou atrapalha?
AN Essa é uma confusão comum. Eu e o Otto somos parecidos. Nossa herança é a do Brasil dos imigrantes: ele, de holandeses e pernambucanos; eu, de italianos, cearenses e pernambucanos. Nossas mães nos ensinaram o amor pelos livros; nossos pais, mais aventureiros, pela liberdade. Fizemos Betina, princesa loura de olhos azuis, que trás no nome um pouco da história do país: Betina Vidal de Negreiros Negrini Ferreira.
MC Vocês jantam na mesa todos os dias?
AN A gente tenta, mas não é todo dia que dá. Acho bacana comer junto. O que importa é que nossa intimidade é real: somos uma família de verdade. E isso nos protege do mundo. O máximo que posso fazer por meus filhos é dar esse conforto, é fazer com que ele e ela tenham a certeza de que são amados. Porque você não consegue poupá-los das coisas da vida.
MC A dor de romper um relacionamento é uma das maiores?
AN Posso dizer que nunca amei antes do Otto verdadeiramente alguém [além de Benício, namorou Marcos Palmeira e André Gonçalves]. Antes do Otto, ao me relacionar, estava buscando a mim mesma no outro. Aí, cheguei nos 30 e pensei: agora é hora de viver um grande amor. Com 31, conheci o Otto.
MC Por último: liberdade existe?
AN Desde que você se livre das culpas e entenda que somos todos manifestações divinas. Aí, existe...
Uma das melhores entrevistas!

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